sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Cigano


 Tomou a mão miúda nas suas, analisando com minúcia os detalhes de suas linhas, enquanto checava as cartas do tarô. Da figura do cigano emanava a sabedoria de suas certezas, e o amor de suas dúvidas. O aspecto pardo de suas mãos, manchadas com o carvão dos fumos, e turvas dos pêlos grossos que lhes brotavam quase inteiras, não perdia a ternura afável que irradiava do seu olhar. O sereno de sua respiração enchia o quarto com gotas de orvalho, impregnando-o com o cheiro entorpecente de seu haxixe, ao mesmo tempo em que ele exalava um odor de suor cozido que não se deixava esquecer de sua humanidade. O brilho de suas joias dourava todo espaço, ensolarando-o à luz de velas. As vestes densas, todas tingidas em tons de púrpura e rubra, escondiam cicatrizes enormes, uma mais linda que a outra. Trazia na cabeça um capacete pontiagudo, metálico, enrolado em panos e guizos como o dos mongóis. Os longos cabelos negros lhe cresciam até a altura do pescoço, cobrindo as orelhas. Em seus braços, embrulhado em pano grosseiro, o menino descansava do enorme esforço de nascer. Sua família esperava em silêncio, complacente, pelo veredito do cigano. A mãe trazia o semblante taciturno, o pai, a pele árida de lavrador da seca, e os irmãos tinham a barriga cravada por uma fome retirante.  O cigano em nenhum momento se apiedou de alguém ali. Seu bigode grosso se sobrepunha aos dentes amarelos enquanto se abriam no sorriso mais lindo de que se tem memória dos homens, enquanto dizia:
--Vai ser feliz. Nunca vai derramar uma lágrima de rancor, ou de arrependimento. Vai dar sorrisos à toa, e beijar sem motivo. Não terá preconceitos, só os necessários. Vai trabalhar sem medo de ficar cansado, e só sairá de um emprego por sua vontade. Vai fazer fortuna às próprias custas, e nunca vai passar fome.
Vendo nos olhos de toda aquela família a felicidade inverossímil do futuro próspero, prosseguiu:
--Vai conhecer o mundo. Vai falar alemão, casar com uma russa, fazer negócios com a Índia, e morar na Inglaterra. Será amado apenas por quem vale a pena, independente de sua vontade. No ápice de sua fraqueza, vai tentar enlouquecer, mas ficará muito satisfeito quando não conseguir. As árvores que plantar jamais deixarão de crescer. Vai dançar a balalaika, sem jamais perder a alegria. Os vidros que quebrar não pisará os cacos. Vai escalar casas apenas para tocar flauta nos telhados às noites de monotonia. Na dúvida entre a esquerda e a direita, irá pra frente. Aprenderá a controlar seus sentimentos, mantendo-os longe de indesejáveis. Vai falar com os deuses, e sempre dará ouvidos ao seu guardião. Vai escalar montanhas pelo puro prazer de olhar pra baixo. Saberá distinguir o bem do mal, e será perseguido por isso. Não descansará enquanto não perpetuar seu nome na história. Vai beber na fonte dos grandes, e não se contentará com mediocridades. Será sempre o melhor juiz, pois sua justiça será cega. Não vai deixar que duvidem de seus sentimentos, seja do amor, seja do ódio. Jamais trará para dentro de casa algo que abale suas estruturas. Em certo ponto de sua vida, vai abdicar às lágrimas, e dali para frente só dará risada. Não vai deixar de viver pelos mortos, ou temer a morte pelos vivos. E vai descansar tranquilo, satisfeito consigo mesmo, redimido de todos os pecados, livre de rancores da vida, chorando de contentamento, dançando parado, cantando em silêncio, e sorrindo pra si. Porque ser feliz é o destino dos fortes. 

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Neblina na Serra

E esperou na chuva, excitado, com um sorriso famigerado no rosto, ouvindo cada gota d’água que caía na aba de seu chapéu ecoando no vazio do pensamento. O pingado grosso em seu sobretudo de couro ia tingindo uma musiquinha taciturna no ar, mas ele não escutava. Mantinha a atenção longe do carinho da natureza, do frio glacial que lhe encharcava as roupas, focada com uma paciência de predador no pouco que restou da estrada dos jesuítas. Agarrava-se a um trabuco enferrujado, engatilhado, preparado e apontado, uma peça de artilharia de uma guerra sem mortos que nunca aconteceu. Encarava a neblina sem dó, esperando que saísse dela a sua presa indefesa.
De repente, bem de longe, se ouviu um trotar tímido, como um cavalo andando na ponta dos pés. Foi se aproximando, cauteloso, sem verdadeira noção do perigo. Quando a silhueta do cavaleiro se desenhou na neblina, o atirador nem precisou mirar, apenas apertou o gatilho do trabuco que já apontava pra lá há muito tempo.
O homem, líder sindical, pai de família, e cidadão respeitado, não teve chance de esboçar reação. Teve a cabeça atravessada por um projétil incandescente e caiu defunto. Seu chapéu se perdeu nas copas das árvores. Seu cavalo sumiu no mato. Seu sangue, a terra bebeu com a chuva. Sua carne havia de ser devorada por vermes, e estaria varrida da face da terra em menos de um mês. O homem que lhe matou por prazer e alguns tostões, ele nunca havia de ver. O advogado que iria encontrar no porto de Santos, ficaria esperando ali por mais um mês, enviando cartas e mais cartas ao sindicato dos trabalhadores de Paranapiacaba, que continuaria a dizer que sim, que o Sr. Jair havia deixado a cidade para ir buscá-lo, que sua família também estava preocupada, que tivesse paciência, e que a polícia também estava se envolvendo.

Já o homem que efetuou o disparo, não se sabe mais dele. A história que escreveu em sangue, ninguém veio a ler, pois está envolta em neblina.