domingo, 29 de setembro de 2013

A Viagem do Alquimista

            Todos os anos, lá pelo mês de novembro, o alquimista escolhia uma cidade para descansar de sua viagem. Apreciou os bons vinhos entre os homens do campo, rezou nos monastérios enevoados que ficavam no topo das montanhas, e partilhou da pobreza dos sertanejos. E o povo contava durante muito tempo sobre um homem de olhos cinzentos que colecionava pores do sol numa latinha de amendoim e vendia as bizarrices que cultivava debaixo das axilas. Mas quando chegava o último dia do mês era acometido de novo por suas comichões de viajante sem remédio, desaparecendo sem dar adeus na linha do horizonte. Voltava a morar na estrada, onde pertencia de verdade, vendendo seus tônicos vitaminados e poções curativas para pagar as refeições. Dormia sob o manto aconchegante do firmamento celestial, procurando extrair até a última gota do suco de besouros, ou tentando sorver o elixir da felicidade à luz das estrelas. Aproveitava a água das chuvas para cozinhar as unhas de colosso em seu caldeirão, para diluir o pó de osso, ou até mesmo para beber. Adicionava as vozes élficas que achava na floresta ou o ronronar de fêmeas excitadas à receita tradicional de poção do amor para máxima eficiência. Meditava por horas a fio, procurando transformar o caldo sem vida nas poções fantásticas de propriedades metafísicas pelas quais era famoso. Então vendia os frutos de seu trabalho por uma sandália nova, um pedaço de pão, ou um dia de vida. Seguia seu caminho em solidão, pagando de bom grado o caríssimo preço de sua magia, que era perseguir eternamente o outro lado do globo. E quando pensava que não poderia mais aguentar os calos nos pés e o vento nas costas, sentia a brisa leve de novembro soprando em seus ouvidos, e escolhia uma cidade para descansar de sua viagem. Assim seguia, feliz em apreciar cada momento da bênção que era a maldição dos magos.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Longa Vida ao Relojoeiro

          Todas as vezes que Maria de Los Remedios se via tropeçando nas engrenagens avulsas pela casa, ou pisando nos homenzinhos azulados que andavam livres pelos corredores, amaldiçoava o dia em que seu filho conheceu o Relojoeiro. Entrava em sua oficina apenas para praguejar contra os mistérios do tempo. O menino raquítico e seu mestre grisalho, porém, pareciam imersos num minuto despreocupado, invulneráveis aos impropérios da ignorância. Entretinham-se em encaixar as microscópicas engrenagens no coração pulsante de suas invenções, discutiam aos gritos as utilidades de um relógio que fizesse retroceder o tempo, e procuravam exaustivamente a maneira exata de se medir um segundo. Uma vez, criaram um enorme mecanismo para prever com exatidão a hora em que começa a chover nos sonhos, mas tiveram que desmontá-lo por completo quando perceberam que a barba do Relojoeiro estava presa em seu ventre metálico. Criaram também um dispositivo para medir a duração de um pensamento, e outro que fazia os minutos escorrerem por entre os dedos. Faziam por diversão reloginhos que mediam o tempo a esmo, acoplando em seu interior os homenzinhos azulados que sopravam as engrenagens. E passavam noites em claro, trabalhando ao som do incessante compasso dos ponteiros.
        Quando o Relojoeiro amanheceu morto, caído sobre uma máquina incompleta que tinha como objetivo retroceder a idade das doenças à insignificância de uma célula, Maria de Los Remedios não conseguiu comemorar sua morte como pretendia, contagiada que estava pelo luto profundo de seu filho. Passou a tarde inteira sentado ao lado do corpo sem vida de seu mestre, meditando em silêncio. Construiu então para si um gigantesco relógio, um monumento para lembrá-lo que o tempo não aceita mestres, que é amigo da morte, e que não poupa nem mesmo os seus mais apaixonados admiradores.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

O Poderoso Rufar do Bumbo Cósmico

            Andava pelas ruas com o enorme bumbo amarrado à sua barriga, tocando sua sinfonia de um instrumento só por alguns trocados. Rasgava e remendava o tecido da realidade e do bom senso a cada batida de seu bumbo cósmico. O timbre inconfundível de suas notas enchia as vielas de uma música alegre de coração, que fazia as petúnias pularem dos vasos para dançar na sacada das casas. Tirava o vidro das janelas e os deixava flutuando no ar. Os camundongos interrompiam seus delitos para cantarem em coro a canção dos piratas. As louças chinesas pulavam do armário para declamar seu amor aos pratos de plástico. A primeira página dos jornais enchia-se de tirinhas engraçadas sobre bárbaros e gatos cor de laranja. Enquanto isso os cachimbos dos homens inflamavam-se em sonhos empreendedores e saíam correndo pelas casas cuspindo seus delírios de fumaça. As galinhas que haviam sido postas para assar pulavam para fora dos fornos ressuscitadas e completamente restituídas de suas partes, correndo assustadas e ciscando migalhas no chão. Já os diversos quadros nas paredes pulavam para fora de sua realidade aquarela com o único propósito de ouvirem a música do bumbo cósmico uma única vez.
            Quando chegava a noite o músico encerrava as atividades, contava os trocados, comia como o dinheiro deixasse, e recolhia-se ao seu cafofo apertado para dormir. Então deitava-se sobre o bumbo e compunha para si um sonho leve, com velhos amigos e amores impossíveis. 

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

A Morte da Grande Besta

            Despiu seu corpo das vestes de guerra e largou as espadas e os machados para descansar seu corpo retalhado. Sua carne não parava de sangrar, enquanto as pontas de flecha envenenadas com beijos de mulher se embrenhavam cada vez mais em seus músculos quando respirava. Ao seu redor, a guerra continuava sem misericórdia. Os xamãs gritavam os mais horríveis impropérios da magia negra, os guerreiros se degolavam com suas foices enferrujadas, as criaturas sedentas de sangue devoravam os homens vivos, e o arauto da morte gargalhava no topo de uma árvore seca. E os cavaleiros de armadura desbotada e espadas incandescentes já não pareciam mais prestar atenção na grande besta que cambaleava ferida no campo de batalha. Em seu orgulho, tentou soltar um feroz urro de guerra, mas só conseguiu esganiçar um berro agudo de dor. Engasgava-se no sangue e na lama enquanto tentava manter de pé a sua silhueta monumental. Já não tinha mais forças em suas pernas, e não conseguia levantar nenhum de seus quatro braços por cima dos ombros. Sua cabeça de elefante não conseguia mexer-se para os lados ou sacudir a tromba. Uma de suas presas estava quebrada, enquanto a outra resistia bravamente à dor e ao cansaço que a estilhaçavam por dentro. Fechou os olhos e se lembrou de quando era o orgulho do exército imperial e rendia fortalezas com olhares de fúria. Respirou fundo para enfrentar a morte e abriu as pálpebras. Surpreendeu-se então ao ver um único dente-de-leão flutuando pelo campo de batalha. Em meio aos cadáveres, o suor e as lágrimas, ele decidiu pousar bem no rosto da grande besta, entre os seus olhos lânguidos de guerreiro caído. Ela então sentiu a vida escorrendo por entre os dedos, e caiu no chão sorrindo. O sangue que jorrava de seu corpo se espalhava pela terra, apenas para transformar-se numa flora fantástica que estendia seus galhos pelo campo de batalha abraçando os combatentes em ternura sincera, implorando pela paz ente os povos. Frutificava no interior das trombetas, impedindo seu brado de violência, e florescia no aço das espadas, fazendo-as perder toda intenção de maldade. Então quando a paz abriu seus braços por completo e tocou os exércitos de ponta a ponta, dando fim a três semanas de batalha consecutiva, puderam todos virar-se para admirar o cadáver de um colosso inverossímil, cercado por borboletas brancas, adornado por cogumelos de várias cores, com um estranho cheiro de felicidade e uma flor de lótus crescendo entre os olhos.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A Fantástica Viagem do Trólebus

            —Agora pense num lugar! —Disse o professor Freund— Um que seja leve e despreocupado, que tenha cheiro de infância e de boas lembranças.
            Tentou se concentrar com o vento forte no rosto e o canto das araras nos ouvidos, mas teve o fluxo de seu pensamento subitamente interrompido pela surpresa de ver passar por entre as nuvens um enorme palácio de azulejos azuis, exatamente conforme havia imaginado. Inclinou-se para fora da máquina voadora, observando espantado enquanto ele desaparecia no horizonte.
            —O trólebus pode ir a qualquer lugar —explicou o professor— Seja ele real ou imaginário!
            Imaginaram então uma cidade esculpida da rocha, habitada por homens vermelhos e criaturas fantásticas. Com castelos de cartas de tarô e casinhas de pão de ló. Em sua mente, ladrilharam as vielas com pedrinhas brancas, dando passagem às multidões de touros ferozes. Borbulharam suas ruas de gente feliz e sem medo, que gostava de esvoaçar lenços brancos por qualquer motivo. Criaram um festival dos tambores onde a população tocava eufórica com fitas vermelhas amarradas nos braços, e cada nota vibrava o universo em alegria sincera. Cultivaram uma flora de fungos e cogumelos coloridos nas paredes de granito. Montaram uma praça bem grande, onde os demônios vermelhos pudessem apregoar suas visões apocalípticas enquanto os deuses azuis tocavam violão por alguns trocados. Então declararam festa geral na cidade, manobrando o opulento corpo de serpente da máquina voadora para desviar dos fogos de artifício de todas as cores, apreciando cada momento da fantástica viagem do trólebus.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Não Despreze as Quiméricas Criaturas

                                     

     Procurava mover seu corpo colossal pela multidão do Mercado Amarelo, tentando distinguir a voz dos vendedores e a das quiméricas criaturas que viviam nos bolsos internos do seu jaleco. Usava uma luneta para poder ver já de longe as melhores ofertas de garrafas de sonhos e potes de areia brilhante. Um homem ao seu lado gritava os preços dos pêssegos e dos homenzinhos mecânicos, enquanto outro parecia entretido na mais cansativa das discussões, negociando o valor de uma maçã mordida. Chamou-lhe a atenção um gigantesco animal vestindo uma manta imperial rasgada, que trazia nos braços diversas espécies de peixes pendurados em cabides metálicos. O cheiro do peixe cru já puxava seu corpo em direção à tentação quando sentiu o chifre de uma das criaturas cutucando sua costela. “Não compre! Está estragado”, disse ela. Não convém desprezar as quiméricas criaturas. Cunhadas no suor e nas lágrimas, foram criadas para dar os mais sábios conselhos. “A solução para os problemas do cotidiano”, como as descreveu o vendedor. “Siga em frente”, continuaram aconselhando. Ansioso, continuou avançando sua forma monumental por entre as ruas, admirando através da luneta o espetáculo do Mercado Amarelo. Viu um vendedor de grãos deixar um punhado de lentilhas escorrer por entre os dedos como areia, enquanto outro trazia nos braços cântaros transbordando com mel envenenado. Passou ao seu lado um homem vendendo remédios e outro que oferecia vegetais de todos os tipos. “Compre umas bolinhas rosas para o nervoso”, disse uma das criaturas. “E algumas roxas para os delírios da mente”, completou mais uma. “Leve também alguns legumes para a sopa”, lembrou a outra. Obedeceu apenas para receber mais um conselho enigmático: “continue andando, e não se esqueça de pedir um balão”. Curioso, seguiu até dar de cara com um homem vendendo saquinhos de cores diferentes onde os cubos de gelo não derretiam, e os relógios não andavam. Mesmo não conseguindo conceber em sua mente um invento mais inútil, perguntou quanto custava, e o homem lhe respondeu fervendo: “uma poesia, um abraço, e um sorriso”. Pagou de bom grado com uns versinhos de sua autoria, um abraço apertado que vinha guardando para a melhor ocasião, e um sorriso amarelo que havia restado no fundo do seu coração. Pediu também o balão, que o vendedor ficou feliz em lhe dar de presente. Amarrou-o na cintura e viu-se livre de todo o peso da Terra, flutuando por cima do Mercado Amarelo, assistindo de longe o burburinho da multidão. E quando esteve livre de todo nervoso da rotina estafante, agradeceu à sorte por ter dado ouvidos às quiméricas criaturas.