A um
escritor pode parecer divertido ficar alguns instantes com a gravidade
suspensa: as páginas avulsas levitando a esmo pelo espaço, aproveitando aquele
momento de falha tênue na realidade para se inspirarem em seus empreendimentos
fantásticos. A um empilhador de caixas, porém, estes mesmos instantes podem
parecer extremamente assustadores. Especialmente para um empilhador de caixas
do Porto dos Náufragos. Ali todo tipo de mercadoria é enviada aos quatro cantos
do mundo, passando antes pela burocracia das minuciosas leis do empilhamento. As
caixas com tempero, por exemplo, jamais poderiam ficar próximas às caixas
contendo água ungida para operações mágicas, pois sempre existe a possibilidade
de esta entrar em ebulição por vontade própria, comprometendo assim as
propriedades gustativas de certas especiarias. Existem também algumas
restrições em relação às cores. Recipientes vermelhos costumam ser separados
dos azuis, para evitar as brigas e os prejuízos que elas acarretam — a não ser
que o remetente destes objetos envie uma carta explicando que eles são amigos,
e que podem viajar juntos. Amarelos não gostam de ficar debaixo dos brancos, e
assim por diante. É por estas e outras que o trabalho de empilhador de caixas
pode ser classificado como um esforço da mente e dos músculos, já que consiste
em montar gigantescos quebra-cabeças onde cada peça pode pesar entre zero
vírgula um grama e trinta e quatro vírgula sete quilos.
Assim,
é quase desnecessário ressaltar o motivo para o medo dos empilhadores: mesmo os
mais leves instantes de suspensão das leis gravitacionais poderiam arruinar
horas de trabalho árduo, levitando as caixas e embaralhando-as no ar. José dos
Reis tem trinta e quatro anos de idade, dos quais trinta e oito passou
empilhando caixas no Porto dos Náufragos. Costuma dizer, orgulhoso, que já
empilhou de tudo: caixas de patos assados sobre embalagens de bonecos
assassinos ao lado de recipientes com especiarias do outro mundo. Viu todo tipo
de mercadoria chegar e partir. Réguas que medem a saudade, ábacos que calculam
o sentimento, até mesmo uma gaiola contendo uma rara espécie de pássaro que não
canta, mas que toca violino. Em verdade, José ama o seu trabalho. Apesar disso,
costumava irritar-se absurdamente com os surtos da gravidade. Ficava irado ao
ver seu trabalho sendo bagunçado pelas arbitrariedades da fantasia. Enviou
inúmeras cartas aos seus supervisores implorando que tomassem alguma
providência, mas seus apelos foram ignorados. Hoje, porém, adota outra postura
diante as suspensões das leis da física: todas as vezes que as caixas começam a
se desgarrar da realidade e seus pés se veem livres do peso do mundo, José puxa o caderninho surrado de dentro do bolso, e começa a escrever.