quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Sobre as Inconveniências da Gravidade Suspensa

            A um escritor pode parecer divertido ficar alguns instantes com a gravidade suspensa: as páginas avulsas levitando a esmo pelo espaço, aproveitando aquele momento de falha tênue na realidade para se inspirarem em seus empreendimentos fantásticos. A um empilhador de caixas, porém, estes mesmos instantes podem parecer extremamente assustadores. Especialmente para um empilhador de caixas do Porto dos Náufragos. Ali todo tipo de mercadoria é enviada aos quatro cantos do mundo, passando antes pela burocracia das minuciosas leis do empilhamento. As caixas com tempero, por exemplo, jamais poderiam ficar próximas às caixas contendo água ungida para operações mágicas, pois sempre existe a possibilidade de esta entrar em ebulição por vontade própria, comprometendo assim as propriedades gustativas de certas especiarias. Existem também algumas restrições em relação às cores. Recipientes vermelhos costumam ser separados dos azuis, para evitar as brigas e os prejuízos que elas acarretam — a não ser que o remetente destes objetos envie uma carta explicando que eles são amigos, e que podem viajar juntos. Amarelos não gostam de ficar debaixo dos brancos, e assim por diante. É por estas e outras que o trabalho de empilhador de caixas pode ser classificado como um esforço da mente e dos músculos, já que consiste em montar gigantescos quebra-cabeças onde cada peça pode pesar entre zero vírgula um grama e trinta e quatro vírgula sete quilos.
            Assim, é quase desnecessário ressaltar o motivo para o medo dos empilhadores: mesmo os mais leves instantes de suspensão das leis gravitacionais poderiam arruinar horas de trabalho árduo, levitando as caixas e embaralhando-as no ar. José dos Reis tem trinta e quatro anos de idade, dos quais trinta e oito passou empilhando caixas no Porto dos Náufragos. Costuma dizer, orgulhoso, que já empilhou de tudo: caixas de patos assados sobre embalagens de bonecos assassinos ao lado de recipientes com especiarias do outro mundo. Viu todo tipo de mercadoria chegar e partir. Réguas que medem a saudade, ábacos que calculam o sentimento, até mesmo uma gaiola contendo uma rara espécie de pássaro que não canta, mas que toca violino. Em verdade, José ama o seu trabalho. Apesar disso, costumava irritar-se absurdamente com os surtos da gravidade. Ficava irado ao ver seu trabalho sendo bagunçado pelas arbitrariedades da fantasia. Enviou inúmeras cartas aos seus supervisores implorando que tomassem alguma providência, mas seus apelos foram ignorados. Hoje, porém, adota outra postura diante as suspensões das leis da física: todas as vezes que as caixas começam a se desgarrar da realidade e seus pés se veem livres do peso do mundo, José puxa o caderninho surrado de dentro do bolso, e começa a escrever.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

O Barão e a Fuga

            Quando chegou à conclusão de que a vida neste mundo era impossível, começou a construir a máquina de sua partida. Durante anos negligenciou a vida em sociedade, empenhando-se unicamente em ciscar pelos ferros-velhos atrás de uma porca ou parafuso que servisse à sua fabulosa construção. Passava as noites trancado em sua oficina, rabiscando rascunhos sem fim e confessando suas frustrações à inocência dos papéis em branco. Planejou um mecanismo absurdo que haveria de libertá-lo definitivamente de sua existência terrena, e a este deu o nome de Barão. Projetou-o gigante, infalível. Tinha cordas de harpa, pernas de aço, e fortes asas de anjo. E quando ficou completo era uma obra-prima em todos os seus detalhes: dos mais letais aos mais sutis.
            Mas quando chegou a hora de ligá-lo, acovardou-se. Foi tomado por um súbito medo do desconhecido. Viu-se refletido na carne de lata do Barão. Sua força, sua ferocidade. Percebeu também nos dois uma incorrigível fragilidade à solidão e ao tempo. Naquele instante soube que criou um amigo, ao invés de um instrumento para sua fuga definitiva.
            Então fechou os olhos, e apertou o derradeiro botão. Dois instantes depois, não havia mais nada em seu escritório. Os móveis haviam sido destruídos pelo fogo, e o teto estava ferido por um gigantesco buraco. Entre os destroços não se podia reconhecer nada deste mundo, com a exceção de um bilhete chamuscado e de algo que poderia ser um esqueleto metálico completamente carbonizado.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

A Garrafa e a Chuva

            Guardou seus pensamentos chuvosos dentro de uma garrafa, observando a tempestade por trás do vidro azulado. Sentiu-se completamente aliviado por estar longe da luz dos raios e do estrondo dos trovões. Podia admirar as estrelas de novo, sem a interferência cinzenta das nuvens carregadas. Estava livre para vestir suas nobres roupas de açúcar, sem precisar temer a nudez e a vergonha. Podia enfim andar sem o peso dos fortes pingos d’água constantemente testando a força de suas costas. Conseguiria outra vez, depois de tantos anos, usar seu magnífico capacete com enormes antenas metálicas, destemido e despreocupado, confiante que sua vaidade não haveria de ser incomodada pelas descargas elétricas que despencavam dos céus. E o mar, antes tão bravio, poderia ser, finalmente, seu. Estava livre para desbravar os oceanos, explorar os mil cantos do globo, e travar relações com criaturas fantásticas. Era dono de si, depois de tantos anos escravo da tempestade.
            Mas mesmo estando livre, sentia que não poderia abandonar a garrafa ao seu próprio destino. Temia que fosse achada, aberta, e que a maldição que foi sua caísse sobre os ombros de outra pessoa. Queria escondê-la, trancá-la num baú, cercá-la por um círculo de fogo e deixá-la guardada por um gigante. Mas sabia que a astúcia iria encontrar o esconderijo, que o tempo devoraria o baú, que a água apagaria o fogo, que as engenhocas dos gananciosos derrotariam o gigante, e que as mãos dos homens imprudentes haveriam de abrir outra vez a garrafa das maldições. Sabia que só havia um jeito de impedir que aquela desgraça voltasse a cair sobre a Terra.
            Então naquela tarde algumas pessoas viram um homem zarpando ao desconhecido, vestindo um terno branco de açúcar, usando um capacete de antenas metálicas, e navegando naquilo que parecia ser uma enorme embarcação de vidro.