quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Uma Visita à Casa de Ópio

            Seja bem-vindo à casa de ópio. Sinta-se à vontade para deixar seu casaco no cabide à direita, mas não se incomode se ele levantar e sair andando. Acompanhe-me em um tour pelas instalações, se for do seu agrado. Como você já deve saber, somos a mais respeitada casa de ópio da nação, e são poucos os prazeres na terra que se igualam ao nosso produto. Assim, pedimos desculpas pelos seis meses de espera para agendar sua visita, mas garantimos que cada segundo terá valido a pena. A maioria de nossos clientes prefere nunca abandonar a casa, mas todo hóspede é livre para sair quando quiser — contanto que não tenha nenhuma dívida pendente. Se seu dinheiro acabar, não se preocupe. Também aceitamos trabalho como forma de pagamento. Você pode trabalhar em qualquer área das instalações que preferir, da recepção dos novos hóspedes à preparação da substância.
            Nossa casa fornece ópio das mais variadas formas. O chá de ópio é servido sempre às cinco. Os vapores da sauna também são temperados com ópio, assim como o amaciante das toalhas e o sabonete dos banheiros. Se for de sua preferência, podemos servir ópio em seu quarto, mas recomendamos que o consuma no salão principal por razões sociais.  Nos banhos árabes o ópio também é servido em sua forma injetável, e qualquer um de nossos funcionários pode te ajudar com a aplicação da substância. Todos os drinques do bar também contém ópio, menos a água. Depois do jantar são servidas sobremesas à base de ópio, todas elas requintadas e saborosas. Todas as refeições são omelete, e começam a ser servidas à uma da tarde e às sete da noite.
            Não se incomode com os homens esqueléticos que se amontoam pelos cantos. Por favor, não puxe as tranças dos chineses. Os homens de Java não falam sua língua, não tente se comunicar com eles. Os ingleses não gostam de ser incomodados na hora do chá. Os neozelandeses são muito sociáveis e inteligentes. Os franceses não são muito civilizados quando estão sob o efeito do ópio, e não seria sábio abordá-los nestas circunstâncias. Por favor, não experimente nenhuma brincadeira de mau gosto. Assim, creio que eu não precise recomendar para que fique longe dos russos quando estiver contando piadas de cossacos.
            Se por acaso você vir alguma criatura fantástica andando pela casa, pedimos que não a aborde. Não se assuste com o dragão que rasteja pelas paredes, ele é só uma pintura. Se a fumaça e o ar suspirarem malícias ao seu ouvido, ignore. Procure não atrapalhar a concentração dos monstros enxadristas. Se você ouvir cânticos ululantes sendo entoados na noite cerrada, ignore-os também. Concentre-se em apreciar o seu ópio, e nenhuma criatura perversa deverá te incomodar.
            Em algum momento, você pode sofrer de tremores convulsivos e profundos sentimentos de tristeza e solidão. Uma boa dose de ópio costuma ser o remédio adequado nestes casos. Os clientes buscam o conforto de nossa casa pelos mais variados motivos. Alguns vêm em busca da musa inspiradora. Outros pretendem preencher o vazio de suas almas. Há quem procure acalentar as dores da doença, e há quem venha por simples recreação. Mas independente do motivo, raça, sexo ou país de origem, a casa do ópio não faz distinção entre seus clientes. Chegamos ao seu quarto, aqui está a chave. Esperamos que aproveite sua estadia. 

terça-feira, 11 de março de 2014

O Conto do Gênio Sem Nome

            Dormindo em seu vaso de cobre, embalado pelo pranto inconsolável das ondas marinhas, o gênio sem nome sonhava com flores. As águas que tentavam perturbar sua paz, invadindo sua moradia pela porta da frente, imediatamente davam de cara com o poderoso feitiço de proteção, que expulsava os intrusos com um terrível gosto de cinzas na boca. Mas, mesmo com as conjuras e impropérios da magia, o gênio não conseguia permanecer imune às perturbações do mundo sensorial. Era obrigado por juramento de sangue a obedecer às ordens dos mortais. Então todas as vezes que tinha seus sonhos roubados por algum infeliz, erguia-se para fora de sua morada com todo o seu ódio de condenado, disposto a arruinar a vida de quem o despertou.
            —Quero mulheres — pediu a carpa negra.
            O gênio, malicioso, cercou-a de dezenas de mulheres, uma mais feia que a outra.
            —Quero dinheiro — pediu o polvo.
        O gênio, cruel, encheu seus oito braços com pulseiras de ouro cravadas de diamantes de outras dinastias. O polvo ainda se admirava, estarrecido, quando foi roubado e morto.
            —Quero andar para frente — pediu o caranguejo.
         Mas o gênio, desumano, o amaldiçoou a andar para sempre em frente, numa linha reta que dava a volta no globo e abraçava a si mesma.
            —Quero poder — pediu o camarão.
            E o gênio, sádico, o transformou em outro gênio, para que passasse dez mil anos trancado num vaso e realizando pedidos.
            —Quero flores — pediu a truta.
         Então o gênio, frágil, hesitou. Viu nos olhos daquela criatura algo tão humano e tão bonito que chegava a fazer os ossos cantarem. Lembrou-se dos tempos de floricultura, antes das jornadas pelo poder, dos pactos diabólicos, da prisão de ventre. Sentiu rasgar em seu rosto um sorriso esquecido, que voltava como um amigo de infância. Conjurou então um buquê fantástico, composto das raríssimas flores do outro lado, com cheiro de poesia fresca e de esperança que não morre. 

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Sobre as Inconveniências da Gravidade Suspensa

            A um escritor pode parecer divertido ficar alguns instantes com a gravidade suspensa: as páginas avulsas levitando a esmo pelo espaço, aproveitando aquele momento de falha tênue na realidade para se inspirarem em seus empreendimentos fantásticos. A um empilhador de caixas, porém, estes mesmos instantes podem parecer extremamente assustadores. Especialmente para um empilhador de caixas do Porto dos Náufragos. Ali todo tipo de mercadoria é enviada aos quatro cantos do mundo, passando antes pela burocracia das minuciosas leis do empilhamento. As caixas com tempero, por exemplo, jamais poderiam ficar próximas às caixas contendo água ungida para operações mágicas, pois sempre existe a possibilidade de esta entrar em ebulição por vontade própria, comprometendo assim as propriedades gustativas de certas especiarias. Existem também algumas restrições em relação às cores. Recipientes vermelhos costumam ser separados dos azuis, para evitar as brigas e os prejuízos que elas acarretam — a não ser que o remetente destes objetos envie uma carta explicando que eles são amigos, e que podem viajar juntos. Amarelos não gostam de ficar debaixo dos brancos, e assim por diante. É por estas e outras que o trabalho de empilhador de caixas pode ser classificado como um esforço da mente e dos músculos, já que consiste em montar gigantescos quebra-cabeças onde cada peça pode pesar entre zero vírgula um grama e trinta e quatro vírgula sete quilos.
            Assim, é quase desnecessário ressaltar o motivo para o medo dos empilhadores: mesmo os mais leves instantes de suspensão das leis gravitacionais poderiam arruinar horas de trabalho árduo, levitando as caixas e embaralhando-as no ar. José dos Reis tem trinta e quatro anos de idade, dos quais trinta e oito passou empilhando caixas no Porto dos Náufragos. Costuma dizer, orgulhoso, que já empilhou de tudo: caixas de patos assados sobre embalagens de bonecos assassinos ao lado de recipientes com especiarias do outro mundo. Viu todo tipo de mercadoria chegar e partir. Réguas que medem a saudade, ábacos que calculam o sentimento, até mesmo uma gaiola contendo uma rara espécie de pássaro que não canta, mas que toca violino. Em verdade, José ama o seu trabalho. Apesar disso, costumava irritar-se absurdamente com os surtos da gravidade. Ficava irado ao ver seu trabalho sendo bagunçado pelas arbitrariedades da fantasia. Enviou inúmeras cartas aos seus supervisores implorando que tomassem alguma providência, mas seus apelos foram ignorados. Hoje, porém, adota outra postura diante as suspensões das leis da física: todas as vezes que as caixas começam a se desgarrar da realidade e seus pés se veem livres do peso do mundo, José puxa o caderninho surrado de dentro do bolso, e começa a escrever.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

O Barão e a Fuga

            Quando chegou à conclusão de que a vida neste mundo era impossível, começou a construir a máquina de sua partida. Durante anos negligenciou a vida em sociedade, empenhando-se unicamente em ciscar pelos ferros-velhos atrás de uma porca ou parafuso que servisse à sua fabulosa construção. Passava as noites trancado em sua oficina, rabiscando rascunhos sem fim e confessando suas frustrações à inocência dos papéis em branco. Planejou um mecanismo absurdo que haveria de libertá-lo definitivamente de sua existência terrena, e a este deu o nome de Barão. Projetou-o gigante, infalível. Tinha cordas de harpa, pernas de aço, e fortes asas de anjo. E quando ficou completo era uma obra-prima em todos os seus detalhes: dos mais letais aos mais sutis.
            Mas quando chegou a hora de ligá-lo, acovardou-se. Foi tomado por um súbito medo do desconhecido. Viu-se refletido na carne de lata do Barão. Sua força, sua ferocidade. Percebeu também nos dois uma incorrigível fragilidade à solidão e ao tempo. Naquele instante soube que criou um amigo, ao invés de um instrumento para sua fuga definitiva.
            Então fechou os olhos, e apertou o derradeiro botão. Dois instantes depois, não havia mais nada em seu escritório. Os móveis haviam sido destruídos pelo fogo, e o teto estava ferido por um gigantesco buraco. Entre os destroços não se podia reconhecer nada deste mundo, com a exceção de um bilhete chamuscado e de algo que poderia ser um esqueleto metálico completamente carbonizado.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

A Garrafa e a Chuva

            Guardou seus pensamentos chuvosos dentro de uma garrafa, observando a tempestade por trás do vidro azulado. Sentiu-se completamente aliviado por estar longe da luz dos raios e do estrondo dos trovões. Podia admirar as estrelas de novo, sem a interferência cinzenta das nuvens carregadas. Estava livre para vestir suas nobres roupas de açúcar, sem precisar temer a nudez e a vergonha. Podia enfim andar sem o peso dos fortes pingos d’água constantemente testando a força de suas costas. Conseguiria outra vez, depois de tantos anos, usar seu magnífico capacete com enormes antenas metálicas, destemido e despreocupado, confiante que sua vaidade não haveria de ser incomodada pelas descargas elétricas que despencavam dos céus. E o mar, antes tão bravio, poderia ser, finalmente, seu. Estava livre para desbravar os oceanos, explorar os mil cantos do globo, e travar relações com criaturas fantásticas. Era dono de si, depois de tantos anos escravo da tempestade.
            Mas mesmo estando livre, sentia que não poderia abandonar a garrafa ao seu próprio destino. Temia que fosse achada, aberta, e que a maldição que foi sua caísse sobre os ombros de outra pessoa. Queria escondê-la, trancá-la num baú, cercá-la por um círculo de fogo e deixá-la guardada por um gigante. Mas sabia que a astúcia iria encontrar o esconderijo, que o tempo devoraria o baú, que a água apagaria o fogo, que as engenhocas dos gananciosos derrotariam o gigante, e que as mãos dos homens imprudentes haveriam de abrir outra vez a garrafa das maldições. Sabia que só havia um jeito de impedir que aquela desgraça voltasse a cair sobre a Terra.
            Então naquela tarde algumas pessoas viram um homem zarpando ao desconhecido, vestindo um terno branco de açúcar, usando um capacete de antenas metálicas, e navegando naquilo que parecia ser uma enorme embarcação de vidro.

sábado, 25 de janeiro de 2014

A Floresta dos Sonhos e das Ruínas

            Encararam-se de longe, e o garoto pôde experimentar da esplêndida realidade do Cervo. Sentiu as patas fortes cavando a terra molhada, e os enormes cornos abrindo-se no ar. Sentiu sua respiração úmida, e o poder de seus músculos. Esqueceu-se de seu nome, sua história, do por que estava ali, das quiméricas criaturas subitamente caladas em seu bolso... E por um instante, existiu mil vezes ao mesmo tempo. Despertou, lenta e pacientemente, de dentro de uma semente. Fugiu, apavorado, de uma fera que o perseguia mato adentro. Sentiu-se enorme, majestoso, com suas raízes enterradas profundamente na carne do mundo. Desabrochou sem pressa, saudando os besourinhos que vinham pousar em seu corpo. Correu veloz, riacho, e sentiu-se bebido por um animal corpulento que ofegava à sua margem. Estendeu seus braços felpudos de fungo, acariciando a pele dura da árvore onde morava. Apreciou do profundo silêncio mineral, refletindo sobre os mistérios do tempo e da vida. Piou, rugiu, grunhiu e grasnou. Sentiu os insetos fazerem ninho no interior de seu cadáver, revolvendo o pouco de carne que ainda restava para plantar seus ovos. Devorou um mosquito desavisado que voava perto demais de seu corpo viscoso. Nadou com cautela entre os caules dos aguapés. Esgueirou-se por entre as plantas perseguindo sua presa, já saboreando sua carne envenenada. Andou com sua casa nas costas, cumprimentando devagar todos os espíritos puros da natureza que cruzavam o seu caminho.
            Sentiu até mesmo o orgulho das ruínas de seus antepassados, tristes testemunhas da queda da Civilização da Seda. Estas, registros históricos vivos, entregavam-se pouco a pouco ao abraço úmido da natureza. E cada sensação humilhante como o crescer de um cogumelo azul em suas cordas de metal, ou o brotar de um pé de feijão em suas ranhuras, era imediatamente sufocada por uma lembrança dos áureos tempos. Empenhavam-se em reconstruir, nos mínimos detalhes, as conversas entre os cientistas e os poetas que um dia repercutiram em suas paredes de pedra. Então quando viram o espírito de um garoto que se juntava à fantástica realidade da floresta, decidiram transmitir a ele a sensação mais pacífica que seu orgulho lhes permitia conhecer: o sono altivo e inquebrantável dos gigantes de ferro.
            Mas mesmo a expressão impassível dos gigantes não era suficiente para o garoto. Embriagado, apaixonado, degustava cada detalhe da vida na floresta. Apreciava as mais fugazes impressões dos sentidos, como o vento em suas bochechas ou o dialeto quadrado das cascas de árvore. Já não dava mais atenção a seu próprio corpo que se cercava de vermes e abutres, atraídos pelo cheiro da carne que começava a apodrecer.

domingo, 19 de janeiro de 2014

Sobre Baleias e Tapetes Voadores

            Estava prestes a jogar o último tapete ao mar quando ouviu a baleia-jubarte navegando nos céus. Cortava as nuvens com sua forma majestosa, bailando sutil com seus deuses e amigos imaginários. Tomou um momento para admirar o animal, antes de finalizar a árdua tarefa. O grosso bigode salgado escondeu o sorriso triste, enquanto as roupas surradas sufocaram o suor frio. As lágrimas, porém, brotaram livres de qualquer repressão. Deslizavam devagarinho no rosto endurecido, deixando um rastro tênue de humanidade. O tapete não tentava mais reagir. Sem forças, prostrado pelas correntes de ferro que lhe sugavam a vida aos poucos, parecia ter se entregado ao destino triste dos homens que viram demais. Lembrava-se com esforço dos dias de glória, quando flutuava entre as pilastras áridas e pairava sobre as ruas do Mercado Amarelo. O Capitão, em todos os seus anos de mar, nunca tinha visto um tapete voador em pessoa. Viu as hidras e as sereias, as cidades de coral e os peixes de metal. Viu um redemoinho engolir uma ilha inteira, pedra por pedra. Viu navios fantasmas, piratas chineses, lulas gigantes. Encontrou milhares de mensagens em garrafas, todas com declarações de amor a uma mesma mulher: Leonora Augusta. Ouvia outros marinheiros contarem sobre a estranha natureza dos tapetes: seus hábitos de voarem rente ao mar, para sentirem o cheiro da água salgada; seu pavor a todo tipo de opressão; seu amor incondicional pela poesia. Falavam da maneira espetacular com que eles recitavam seus versos, em sua língua lânguida e comprida, como a das baleias-jubarte. Então quando a baleia voadora soltou um longo e triste suspiro, ficou surpreso ao ver o tapete responder na mesma intensidade. Ela voltou a retrucar, e ele respondeu de novo. Falavam-se em lamentos rimados, sons angelicais de outro mundo. O Capitão, comovido pelas vozes de violino, pensava em parar. Pensava em largar tudo, ignorar a diretriz cento e doze, e zarpar para o leste. O tapete, apaixonado, ria e chorava, contando uma história sobre homens e mulheres livres. Nela, um agricultor de pés vermelhos pedia a um gênio pelo poder de plantar uma safra que crescesse até dois metros de altura, e que as pragas não pudessem devorar. O Capitão, porém, tinha medo. Temia que as frotas imperiais o perseguissem até os confins do mundo, cobrando pela morte de todos os dezesseis tapetes voadores. O gênio, que era um homem honrado, perguntou ao fazendeiro o que ele pretendia fazer com este poder. Ele respondeu: “alimentar meu povo!”. Era um nobre propósito, maior que qualquer dinheiro ou conforto do mundo dos homens. O gênio, porém, advertiu: “Irão te caçar e queimar sua lavoura, grão a grão”. Já sabia, e agora estava disposto a morrer numa luta de espadas e enxadas do outro lado do globo, se precisasse. “Mas valerá a pena, se puder alimentar uma alma inocente sequer”, concluiu o homem. Disse, chorou, rompeu as correntes e estendeu o tapete, libertando seus desenhos amarelos. Empunhou a enxada, preparou as costas para o trabalho duro. Observou as criaturas voarem juntas, felizes. Ouviu por mais um momento seu canto angelical. Arou o solo, plantou as sementes. Pegou a bússola e girou o leme de sua embarcação.

A Triste Morte da Barata Imperial

            Parada em seu castelo sem paredes, sem janelas, sem cortinas de cetim, a Barata Imperial descansava depois da dura batalha. Mexia de leve as enormes antenas, degustando cada detalhe sensorial que podia capturar. Projetava sua sombra colossal sobre o azulejo quente do banheiro, afirmando-se no território conquistado. Era seu, enfim, aquele pequeno universo. Agora era dona do chuveirinho enferrujado, da cortina de plástico, do lixinho abarrotado. Eram suas as escovas de dente no armário, o sabonete na pia, o rolo de papel higiênico quase acabado. Podia, enfim, viver em paz. Depois de vencer a escuridão dos esgotos, e o sufoco das multidões. Depois de estar entre os canibais e os tiranos. Depois de ter vencido a fome, o caos, e o medo. Em seu âmago, cozinhava um orgulho feroz de besta indomável, de monstro medonho, de criatura assombrosa. Fazia queimar suas entranhas e mexer suas enormes asas marrons. Então quando a mulher voltou ao banheiro, determinada a reconquistar o que era seu por direito, a Barata não a temeu. Não recuou sua forma gigantesca, ou implorou por sua vida miserável. Sabia-se invencível, intocável. Não havia no mundo chinelo ou jornal que pudesse esmagá-la, ou mesmo ferir sua dura couraça. Avançou à sua inimiga, para dar fim ao inevitável duelo. Esta, porém, estava munida da famigerada arma dos covardes: o veneno. Borrifou em cheio na criatura, que rapidamente zuniu para trás da privada, escondendo-se entre os enferrujados canos tentaculares. No labirinto insolúvel de suas vísceras, onde antes queimava o orgulho, agora ardia a química do mal que destruía seus órgãos e extirpava-lhe a vida. Suas pernas e asas mexiam-se involuntariamente, fazendo-a querer correr seus últimos momentos sobre a Terra. Saiu rastejando de seu esconderijo, certa de sua morte.
            —Mísera! —bradou— Pro diabo que te carregue, você e seus artifícios malignos! Não há mais honra no coração dos homens, ou verdade em suas palavras. Não há mais luz nos céus, ou conforto na palidez da Lua. Não há mais segredo que se possa confiar a ouvidos humanos, nem amor que se possa entregar às suas mãos frias. Não há, entre os infinitos grãos de areia, um só que me possa suspirar no ouvido uma crueldade que eu já não conheça, ou um pecado que já não tenha cometido. Que homem, na Terra ou no Espaço Sideral, pode dizer ter sido devorado e cuspido de novo pelos próprios irmãos? Quem, além de mim, pode jurar pela própria alma que viu o Diabo em pessoa e sentiu seu abraço ardente? Que criatura, entre todas as que existem, pode lembrar-se de todos os detalhes do rosto da Morte? Ah, o sorriso gélido, os olhos de tigre, o cheiro irresistível de fêmea. O toque gentil, a dor implacável... Quem me dera lhe fazer um pedido, velha amiga. Quem me dera ter uma, apenas uma boa lembrança. Uma memória qualquer de um momento feliz, despreocupado, pacífico. Apenas uma tarde de tranquilidade, uma hora de satisfação, um segundo de amor recíproco. Algo que nenhum veneno ou inferno me pudesse tirar. Quando fecho meus olhos só vejo a dor, a caça, os ossos de vidro. Vejo as batalhas e as derrotas. Volto a abri-los, a duras penas, e vejo um mundo cada vez mais escuro. Mais claustrofóbico e finito. Ah, a febre! Ah, o delírio! As paredes se apertam sobre mim, suadas. Quero tocá-las, mas não sei como. Sufocam-me, controlam meus membros. Empurram-me para longe do mar, me enterram na areia de pouco em pouco. Quero gritar tantas coisas, mas não consigo. Tenho ânsia de vomitar o vocabulário que está engasgado há tantos anos em meu peito. Quero sair do lodo em que me deito. Quero o Sol, o inverossímil, o impossível. Pluma de monstro, montaria divina. Foz do sentimento, evangelho diabólico. Alurno, rocha, pão. Homens da mesma cor: azul! Todos ao som dos címbalos, dançamos. Fúria gutural, tribal, asteca... Um senhor de chinelas comprou uma livraria. Mas foi a Deus que ele ofendeu, com sua caligrafia... Quero um castelo de paredes altas, janelas escancaradas, e cortinas de cetim.

domingo, 12 de janeiro de 2014

O Persa e a Arte

            Atravessando as grades ornamentadas da janela, o sol caminhava sobre o chão de terra, cozinhando a civilização de formigas que vivia no subsolo. O calor inverossímil fazia as ostras pularem das prateleiras para dentro de seus aquários, enquanto os pergaminhos ancestrais despertavam de seu sono faraônico apenas para entregarem-se à morte nas mãos das traças. Passando pelo arco de entrada daquele lugar absurdo estava o Persa, que o adentrava pela primeira vez, maravilhado com o cenário que era o estúdio artístico comunitário: um deserto, um palco, e uma concha ao mesmo tempo. De cara, dirigiu-se à primeira tela em branco que viu, rabiscando sem saber uma vida inteira num pincel sem tinta. Fazia um traço infantil, sem medo, que se julgava a mais eterna das coisas. Só parou quando sentiu as vestes puxadas pelas mãos de uma criança, tentando chamar sua atenção. Virou-se para encontrar uma menina descalça, com voz de violoncelo e olhos de lince ferido. Aproximou-se para perguntar, gentil, o que fazia ali. Sem responder, a menina puxou das mãos uns peixinhos de aquarela, e os deixou nadar ao redor do Persa. Os bichos circundaram o homem para depois perderem-se entre as prateleiras de rascunhos oníricos. Chamou a menina com os olhos e puxou-a com as mãos, convidando-a para explorar as estantes atrás dos peixes. Apressou-se à primeira escada que encontrou, mas logo caiu de volta ao chão, rejeitado pelo terceiro degrau. Ouviu os mercadores encapuzados rindo ao longe, perto das esculturas de manteiga. A menina riu também: “Aqui não acreditamos em escadas ou portas. As escadas estão pintando e esculpindo como nós. Se quiser segui-los, nade como eles”. Quando terminou de dizê-lo já estava no ar, soltando centenas de peixinhos de aquarela pelos poros do corpo. O Persa, em devaneio, pulou. E ficou maravilhado quando viu que seus pés não voltaram a tocar no chão. Flutuou junto ao cardume e à garota pelo estúdio, admirando os mariscos que escreviam poesias em seus cascos, e os homens encapuzados que riscavam as paredes com o poder de suas vozes. Ficou perplexo ao perceber que sua pintura também criara vida, povoando o espaço e revolvendo a terra. Empenhava-se em explorar cada vírgula das poesias, cada traço das pinturas, cada sulco das esculturas. Em cada descoberta, encontrava-se. Sentia-se na textura do papel, no cheiro da tinta. Desfrutava de um prazer imenso, de uma despreocupação inacreditável, de um amor pelo mundo completamente recíproco. Quando saiu de lá estava feliz, leve, e trazia ainda na boca o gostinho bom de uma lembrança sem pressa, de quando tecia tapetes vermelhos na Vila dos Velhos Acordeões.