sábado, 25 de janeiro de 2014

A Floresta dos Sonhos e das Ruínas

            Encararam-se de longe, e o garoto pôde experimentar da esplêndida realidade do Cervo. Sentiu as patas fortes cavando a terra molhada, e os enormes cornos abrindo-se no ar. Sentiu sua respiração úmida, e o poder de seus músculos. Esqueceu-se de seu nome, sua história, do por que estava ali, das quiméricas criaturas subitamente caladas em seu bolso... E por um instante, existiu mil vezes ao mesmo tempo. Despertou, lenta e pacientemente, de dentro de uma semente. Fugiu, apavorado, de uma fera que o perseguia mato adentro. Sentiu-se enorme, majestoso, com suas raízes enterradas profundamente na carne do mundo. Desabrochou sem pressa, saudando os besourinhos que vinham pousar em seu corpo. Correu veloz, riacho, e sentiu-se bebido por um animal corpulento que ofegava à sua margem. Estendeu seus braços felpudos de fungo, acariciando a pele dura da árvore onde morava. Apreciou do profundo silêncio mineral, refletindo sobre os mistérios do tempo e da vida. Piou, rugiu, grunhiu e grasnou. Sentiu os insetos fazerem ninho no interior de seu cadáver, revolvendo o pouco de carne que ainda restava para plantar seus ovos. Devorou um mosquito desavisado que voava perto demais de seu corpo viscoso. Nadou com cautela entre os caules dos aguapés. Esgueirou-se por entre as plantas perseguindo sua presa, já saboreando sua carne envenenada. Andou com sua casa nas costas, cumprimentando devagar todos os espíritos puros da natureza que cruzavam o seu caminho.
            Sentiu até mesmo o orgulho das ruínas de seus antepassados, tristes testemunhas da queda da Civilização da Seda. Estas, registros históricos vivos, entregavam-se pouco a pouco ao abraço úmido da natureza. E cada sensação humilhante como o crescer de um cogumelo azul em suas cordas de metal, ou o brotar de um pé de feijão em suas ranhuras, era imediatamente sufocada por uma lembrança dos áureos tempos. Empenhavam-se em reconstruir, nos mínimos detalhes, as conversas entre os cientistas e os poetas que um dia repercutiram em suas paredes de pedra. Então quando viram o espírito de um garoto que se juntava à fantástica realidade da floresta, decidiram transmitir a ele a sensação mais pacífica que seu orgulho lhes permitia conhecer: o sono altivo e inquebrantável dos gigantes de ferro.
            Mas mesmo a expressão impassível dos gigantes não era suficiente para o garoto. Embriagado, apaixonado, degustava cada detalhe da vida na floresta. Apreciava as mais fugazes impressões dos sentidos, como o vento em suas bochechas ou o dialeto quadrado das cascas de árvore. Já não dava mais atenção a seu próprio corpo que se cercava de vermes e abutres, atraídos pelo cheiro da carne que começava a apodrecer.

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