domingo, 19 de janeiro de 2014

A Triste Morte da Barata Imperial

            Parada em seu castelo sem paredes, sem janelas, sem cortinas de cetim, a Barata Imperial descansava depois da dura batalha. Mexia de leve as enormes antenas, degustando cada detalhe sensorial que podia capturar. Projetava sua sombra colossal sobre o azulejo quente do banheiro, afirmando-se no território conquistado. Era seu, enfim, aquele pequeno universo. Agora era dona do chuveirinho enferrujado, da cortina de plástico, do lixinho abarrotado. Eram suas as escovas de dente no armário, o sabonete na pia, o rolo de papel higiênico quase acabado. Podia, enfim, viver em paz. Depois de vencer a escuridão dos esgotos, e o sufoco das multidões. Depois de estar entre os canibais e os tiranos. Depois de ter vencido a fome, o caos, e o medo. Em seu âmago, cozinhava um orgulho feroz de besta indomável, de monstro medonho, de criatura assombrosa. Fazia queimar suas entranhas e mexer suas enormes asas marrons. Então quando a mulher voltou ao banheiro, determinada a reconquistar o que era seu por direito, a Barata não a temeu. Não recuou sua forma gigantesca, ou implorou por sua vida miserável. Sabia-se invencível, intocável. Não havia no mundo chinelo ou jornal que pudesse esmagá-la, ou mesmo ferir sua dura couraça. Avançou à sua inimiga, para dar fim ao inevitável duelo. Esta, porém, estava munida da famigerada arma dos covardes: o veneno. Borrifou em cheio na criatura, que rapidamente zuniu para trás da privada, escondendo-se entre os enferrujados canos tentaculares. No labirinto insolúvel de suas vísceras, onde antes queimava o orgulho, agora ardia a química do mal que destruía seus órgãos e extirpava-lhe a vida. Suas pernas e asas mexiam-se involuntariamente, fazendo-a querer correr seus últimos momentos sobre a Terra. Saiu rastejando de seu esconderijo, certa de sua morte.
            —Mísera! —bradou— Pro diabo que te carregue, você e seus artifícios malignos! Não há mais honra no coração dos homens, ou verdade em suas palavras. Não há mais luz nos céus, ou conforto na palidez da Lua. Não há mais segredo que se possa confiar a ouvidos humanos, nem amor que se possa entregar às suas mãos frias. Não há, entre os infinitos grãos de areia, um só que me possa suspirar no ouvido uma crueldade que eu já não conheça, ou um pecado que já não tenha cometido. Que homem, na Terra ou no Espaço Sideral, pode dizer ter sido devorado e cuspido de novo pelos próprios irmãos? Quem, além de mim, pode jurar pela própria alma que viu o Diabo em pessoa e sentiu seu abraço ardente? Que criatura, entre todas as que existem, pode lembrar-se de todos os detalhes do rosto da Morte? Ah, o sorriso gélido, os olhos de tigre, o cheiro irresistível de fêmea. O toque gentil, a dor implacável... Quem me dera lhe fazer um pedido, velha amiga. Quem me dera ter uma, apenas uma boa lembrança. Uma memória qualquer de um momento feliz, despreocupado, pacífico. Apenas uma tarde de tranquilidade, uma hora de satisfação, um segundo de amor recíproco. Algo que nenhum veneno ou inferno me pudesse tirar. Quando fecho meus olhos só vejo a dor, a caça, os ossos de vidro. Vejo as batalhas e as derrotas. Volto a abri-los, a duras penas, e vejo um mundo cada vez mais escuro. Mais claustrofóbico e finito. Ah, a febre! Ah, o delírio! As paredes se apertam sobre mim, suadas. Quero tocá-las, mas não sei como. Sufocam-me, controlam meus membros. Empurram-me para longe do mar, me enterram na areia de pouco em pouco. Quero gritar tantas coisas, mas não consigo. Tenho ânsia de vomitar o vocabulário que está engasgado há tantos anos em meu peito. Quero sair do lodo em que me deito. Quero o Sol, o inverossímil, o impossível. Pluma de monstro, montaria divina. Foz do sentimento, evangelho diabólico. Alurno, rocha, pão. Homens da mesma cor: azul! Todos ao som dos címbalos, dançamos. Fúria gutural, tribal, asteca... Um senhor de chinelas comprou uma livraria. Mas foi a Deus que ele ofendeu, com sua caligrafia... Quero um castelo de paredes altas, janelas escancaradas, e cortinas de cetim.

Um comentário:

  1. Cara! Perfeito.
    Eu fiquei de ler esse faz um tempão, mas não o fiz. Ai eu vi uma publicação sua no face dizendo que esse é o conto que mais gosta, ai eu quis ler novamente.

    Finalmente consegui e ainda li em voz alta tentando externar os sentimentos da narrativa e do monologo SENSACIONAL da Baratinha guerreira imperial. O delírio, as vivencias, amarguras e desejos foram muito bem colocados.

    Muito bom!

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