Atravessando as grades ornamentadas
da janela, o sol caminhava sobre o chão de terra, cozinhando a civilização de
formigas que vivia no subsolo. O calor inverossímil fazia as ostras pularem das
prateleiras para dentro de seus aquários, enquanto os pergaminhos ancestrais
despertavam de seu sono faraônico apenas para entregarem-se à morte nas mãos
das traças. Passando pelo arco de entrada daquele lugar absurdo estava o Persa,
que o adentrava pela primeira vez, maravilhado com o cenário que era o estúdio
artístico comunitário: um deserto, um palco, e uma concha ao mesmo tempo. De
cara, dirigiu-se à primeira tela em branco que viu, rabiscando sem saber uma
vida inteira num pincel sem tinta. Fazia um traço infantil, sem medo, que se
julgava a mais eterna das coisas. Só parou quando sentiu as vestes puxadas
pelas mãos de uma criança, tentando chamar sua atenção. Virou-se para encontrar
uma menina descalça, com voz de violoncelo e olhos de lince ferido. Aproximou-se
para perguntar, gentil, o que fazia ali. Sem responder, a menina puxou das mãos
uns peixinhos de aquarela, e os deixou nadar ao redor do Persa. Os bichos
circundaram o homem para depois perderem-se entre as prateleiras de rascunhos
oníricos. Chamou a menina com os olhos e puxou-a com as mãos, convidando-a para
explorar as estantes atrás dos peixes. Apressou-se à primeira escada que encontrou,
mas logo caiu de volta ao chão, rejeitado pelo terceiro degrau. Ouviu os
mercadores encapuzados rindo ao longe, perto das esculturas de manteiga. A
menina riu também: “Aqui não acreditamos em escadas ou portas. As escadas estão
pintando e esculpindo como nós. Se quiser segui-los, nade como eles”. Quando
terminou de dizê-lo já estava no ar, soltando centenas de peixinhos de aquarela
pelos poros do corpo. O Persa, em devaneio, pulou. E ficou maravilhado quando
viu que seus pés não voltaram a tocar no chão. Flutuou junto ao cardume e à
garota pelo estúdio, admirando os mariscos que escreviam poesias em seus
cascos, e os homens encapuzados que riscavam as paredes com o poder de suas
vozes. Ficou perplexo ao perceber que sua pintura também criara vida, povoando
o espaço e revolvendo a terra. Empenhava-se em explorar cada vírgula das
poesias, cada traço das pinturas, cada sulco das esculturas. Em cada
descoberta, encontrava-se. Sentia-se na textura do papel, no cheiro da tinta.
Desfrutava de um prazer imenso, de uma despreocupação inacreditável, de um amor
pelo mundo completamente recíproco. Quando saiu de lá estava feliz, leve, e
trazia ainda na boca o gostinho bom de uma lembrança sem pressa, de quando tecia
tapetes vermelhos na Vila dos Velhos Acordeões.
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