domingo, 12 de janeiro de 2014

O Persa e a Arte

            Atravessando as grades ornamentadas da janela, o sol caminhava sobre o chão de terra, cozinhando a civilização de formigas que vivia no subsolo. O calor inverossímil fazia as ostras pularem das prateleiras para dentro de seus aquários, enquanto os pergaminhos ancestrais despertavam de seu sono faraônico apenas para entregarem-se à morte nas mãos das traças. Passando pelo arco de entrada daquele lugar absurdo estava o Persa, que o adentrava pela primeira vez, maravilhado com o cenário que era o estúdio artístico comunitário: um deserto, um palco, e uma concha ao mesmo tempo. De cara, dirigiu-se à primeira tela em branco que viu, rabiscando sem saber uma vida inteira num pincel sem tinta. Fazia um traço infantil, sem medo, que se julgava a mais eterna das coisas. Só parou quando sentiu as vestes puxadas pelas mãos de uma criança, tentando chamar sua atenção. Virou-se para encontrar uma menina descalça, com voz de violoncelo e olhos de lince ferido. Aproximou-se para perguntar, gentil, o que fazia ali. Sem responder, a menina puxou das mãos uns peixinhos de aquarela, e os deixou nadar ao redor do Persa. Os bichos circundaram o homem para depois perderem-se entre as prateleiras de rascunhos oníricos. Chamou a menina com os olhos e puxou-a com as mãos, convidando-a para explorar as estantes atrás dos peixes. Apressou-se à primeira escada que encontrou, mas logo caiu de volta ao chão, rejeitado pelo terceiro degrau. Ouviu os mercadores encapuzados rindo ao longe, perto das esculturas de manteiga. A menina riu também: “Aqui não acreditamos em escadas ou portas. As escadas estão pintando e esculpindo como nós. Se quiser segui-los, nade como eles”. Quando terminou de dizê-lo já estava no ar, soltando centenas de peixinhos de aquarela pelos poros do corpo. O Persa, em devaneio, pulou. E ficou maravilhado quando viu que seus pés não voltaram a tocar no chão. Flutuou junto ao cardume e à garota pelo estúdio, admirando os mariscos que escreviam poesias em seus cascos, e os homens encapuzados que riscavam as paredes com o poder de suas vozes. Ficou perplexo ao perceber que sua pintura também criara vida, povoando o espaço e revolvendo a terra. Empenhava-se em explorar cada vírgula das poesias, cada traço das pinturas, cada sulco das esculturas. Em cada descoberta, encontrava-se. Sentia-se na textura do papel, no cheiro da tinta. Desfrutava de um prazer imenso, de uma despreocupação inacreditável, de um amor pelo mundo completamente recíproco. Quando saiu de lá estava feliz, leve, e trazia ainda na boca o gostinho bom de uma lembrança sem pressa, de quando tecia tapetes vermelhos na Vila dos Velhos Acordeões.

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