quarta-feira, 23 de outubro de 2013

O Conto do Astronauta

            Olhou para fora de sua nave e a viu em chamas, o metal contorcendo-se aos risos e as asas descolando-se do corpo. O peso diminuía a cada instante, já que sua pele de aço esfarelava-se na atmosfera. Diante do desastre e da morte certa, a única atitude que conseguiu tomar foi agir mecanicamente conforme mandava o severo protocolo dos desbravadores do espaço, instalando os plugues neurais em sua cabeça. Estes captariam suas memórias e as transmitiriam em ondas pelo cosmo, ecoando no vazio até chegarem às mãos de alguma máquina responsável, que os computaria e arquivaria para que as falhas do comandante fossem devidamente prevenidas. Mas quando precisou se concentrar em recordar de tudo que havia feito nas últimas vinte e quatro horas, distraiu-se e lembrou a primeira vez que pisou n’O Colosso de Aço. Estava sendo ovacionado pela população que comemorava a partida de mais um aventureiro do infinito. O som dos pífaros dos homens-bode era abafado pelo burburinho da multidão e pelo canto dos pombos. Mas quando o astronauta pisou em sua nave com o pé esquerdo pela primeira vez, o mundo esteve em silêncio. Sentiu-se ecoar pela lataria, tocando cada detalhe do ventre de sua embarcação, acariciando-a em sua totalidade. Andou por seus corredores, apreciou a vista de suas janelas, e pôde passar os dedos longos por seus controles adormecidos. Naquele dia rasgou a estratosfera para nunca mais voltar, convencido que estava de que deveria ter nascido no espaço, e de que haveria de morrer nele.
            Então mesmo em face da destruição e da catástrofe iminentes, o astronauta não se distraía com a lenta canção do computador de bordo ou com as batatinhas chips que voavam pela cabine. Empenhava-se apenas em ignorar o protocolo e apreciar suas lembranças mais recônditas, saboreando de novo as mais singelas vitórias de sua vida. Lembrou-se de quando decorou o primeiro parágrafo do juramento estelar, apenas para nunca mais usá-lo de novo. Esteve mais uma vez no templo de sua iniciação, cercado pelos meninos de capa e iluminado pelas sete velas vermelhas. Reviveu a glória das batalhas interestelares, quando manobrava com maestria a silhueta descomunal d’O Colosso de Aço por entre as linhas inimigas, disparando seus canhões de revertério e seus raios estripadores. Viu naves de ataque ardendo no ombro de Órion. Navegou próximo ao ventre dos deuses, nos limites do espaço sideral. Pôde cantar a canção dos marinheiros sem pudor nos confins da galáxia. Bebeu um copo de leite quente numa cantina árida que ficava na mais miserável colmeia de escória e vilania. Presenciou a morte de estrelas inteiras, e assistiu à luta dos cometas. E lembrou-se do privilégio que foi dormir todas as noites sob a luz onipresente dos corpos celestes.

            Mas quando viu o pântano se aproximando por debaixo das nuvens, e pôde finalmente encarar o planeta que o engolia, não sentiu nenhum tipo de medo ancestral. As entranhas não lhe saltaram pela boca, e os membros não tremeram em desespero. Ao invés disso, sentiu a tranquilidade banal de alguém que perde uma borracha debaixo da mesa, ou que está atrasado para algo sem importância. E a última coisa que se registrou pelos plugues neurais antes do silêncio completo foi uma lembrança tranquila e despreocupada, de uma tarde em que passou degustando um pavê de copo com o rei da Oceania.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Sobre Golpes Furtivos da Memória

            Descendo abruptamente pelas ladeiras da memória, passando pelas lembranças de infância e pelos recônditos da adolescência, chegou repentinamente ao cheiro de seu tio. Aquele perfume inconfundível, inverossímil, chegou até mesmo a existir por um instante em suas narinas. Não pôde evitar em lembrar-se do homem, de sua incomparável fama de leitor voraz e de devorador de javalis. Perguntou-se se ele continuava no ofício de domador de leões, ou se voltara a aquecer motores de barcos a vapor com a força de suas ideias. As cicatrizes profundas em suas costas, entalhadas artisticamente pela crueldade dos grandes felinos, tornaram-se a marca definitiva de sua existência sobre a Terra, tendo sido até mesmo capa de jornal. Seu sobrinho, porém, associava sua presença ao perfume único e ao barulho metálico de suas botas de esporas. Estas, que ele dizia ter ganhado num duelo contra um homem sem nome, foram na verdade presentes de um vendedor itinerante que ele salvou de ser abocanhado por um crocodilo circense que dava piruetas. Não se atrevia a tirá-las, já que pareciam estar impregnadas com a maldição da boa sorte. Com elas, achou na praia uma concha que sussurrava a localização dos tesouros, foi errado por sete tiros à queima-roupa, e escapou por um triz de ser soterrado pelo desmoronamento da torre de Babel. Mas quando abriu a porta para comunicar a seu sobrinho que havia domado um touro pelos chifres, nem mesmo as botas da sorte conseguiram impedir as lágrimas de fugirem de seus olhos. E todas as noites, quando interrompia sua eterna viagem ao redor do mundo, saindo do seio acolhedor da estrada para acampar na natureza, tinha seus estudos arcanos subitamente interrompidos por golpes furtivos da memória, tendo os sentidos e o coração atacados pelo cheiro inconfundível do tio que amou como pai. 

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Conjuras e Impropérios da Magia

            Foi correndo ao Livro das Transmutações, buscar entre seus garranchos a magia certa para salvar seu fiel assistente que derretia no chão de madeira de seu gabinete. Tropeçava em sua barba e derrubava os potes de vidro com fadinhas em conserva conforme passava, procurando o mais rápido que podia por aquele raríssimo volume do conhecimento oculto. Correu por entre as prateleiras, passando pel’O Livro de Ouro da Demonologia, O Guia Definitivo da Mitologia Celta, A História do Universo em Um Volume e Meio, e todos os seis tomos d’A Doutrina Secreta. Seu assistente se desesperava mais a cada segundo, rezando para todos os deuses que conhecia conforme suas pernas se transmutavam num líquido inverossímil, que escorria borbulhando pelas tábuas do assoalho e espantava as pequenas criaturas que viviam debaixo da madeira. Agarrava seu relicário com todas as forças, marcando a prata lisa com suas impressões digitais. Dentro dele havia a última mecha de cabelos de sua mãe, mantida viva pelo gênio doce que vivia na esmeralda que compunha o coração da joia.
       Seu mestre já estava a ponto de desistir de achar o livro quando uma das quiméricas criaturas cochichou em seu bolso: “olhe na terceira prateleira”. E justo ali, onde tanto tinha procurado, escondido atrás do Dogma e Ritual da Alta Magia, estava o Livro das Transmutações. Havia sido largado à tirania das traças séculos atrás, quando os segredos das transmutações repentinamente deixaram de ser importantes ao mago das barbas longas. Mas mesmo o péssimo estado de suas páginas, caindo e esfarelando-se ao toque, não conseguia tirar a atenção do mestre de seu discípulo que derretia. Correu por entre as folhas, caçando por algum feitiço que lhe servisse. Achou um que poderia ser usado para inverter processos de fusão ou para fazer as galinhas voltarem ao ovo. Apressou-se em soltá-lo, mas se decepcionou em constatar que o amigo passou a borbulhar mais agressivamente. Tomado pelo desespero, improvisou uma magia para conjurar uma criatura angélica. Seu livro incinerou-se por inteiro, e de seus arcanos de fumaça saiu uma enorme silhueta de outro mundo. Com a descomunal força dos demônios enfurecidos, transpassou uma gigantesca espada pelo peito do assistente e sumiu no ar com uma gargalhada. O mago soluçava de frustração e descontentamento, enquanto uma flora bizarra de arbustos frutíferos florescia no cadáver de seu amigo. Mas seu lamento se converteu em felicidade quando viu o ajudante sair do mato, completamente restituído de suas partes e sem nenhuma deformidade por conta do acidente. Sua pele havia adquirido um saudável tom de azul, e tinha uma tatuagem em formato de espada no peito, pintada com a raríssima tinta que é a misericórdia dos anjos.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Sobre Viagens no Tempo e Casos de Flatulência

            Atendendo às urgências de um súbito desconforto intestinal, apressou-se em sair de sua máquina para aliviar suas necessidades. Certificou-se de que não precisaria fazer mais nada antes de voltar, pois todo cientista mestrado nas artes de desvendar mistérios sabe dos perigos de misturar viagens no tempo e casos de flatulência. Calculou sua rota de volta para não ser atingido pelos raios errantes que a enorme barata de cobre cuspia de suas antenas, ou para não ser queimado pelos vapores fumegantes que ela bufava de sua couraça. Assumiu a cabine do piloto, deu partida no seu inseto metálico, ajustou a data da viagem, e apertou os cintos. Esteve de volta ao tempo dos xamãs e dos guerreiros, apenas para estudar os primitivos instrumentos musicais. Catalogou mais de mil variações de cítara, outras quinhentas de atabaque, e agora estava empenhado em achar a raiz definitiva de bumbo cósmico. Mas quando finalmente pensou estar fazendo algum progresso em sua pesquisa sentiu um verdadeiro turbilhão em suas entranhas, e teve que voltar correndo para sua época. Atravessou os labirintos do espaço-tempo, amaldiçoando todos os descendentes da vaca que foi servida no almoço com o molho de ervas, e desejando uma morte lenta e dolorosa ao fazendeiro que cultivou os repolhos que compunham a salada. 

domingo, 29 de setembro de 2013

A Viagem do Alquimista

            Todos os anos, lá pelo mês de novembro, o alquimista escolhia uma cidade para descansar de sua viagem. Apreciou os bons vinhos entre os homens do campo, rezou nos monastérios enevoados que ficavam no topo das montanhas, e partilhou da pobreza dos sertanejos. E o povo contava durante muito tempo sobre um homem de olhos cinzentos que colecionava pores do sol numa latinha de amendoim e vendia as bizarrices que cultivava debaixo das axilas. Mas quando chegava o último dia do mês era acometido de novo por suas comichões de viajante sem remédio, desaparecendo sem dar adeus na linha do horizonte. Voltava a morar na estrada, onde pertencia de verdade, vendendo seus tônicos vitaminados e poções curativas para pagar as refeições. Dormia sob o manto aconchegante do firmamento celestial, procurando extrair até a última gota do suco de besouros, ou tentando sorver o elixir da felicidade à luz das estrelas. Aproveitava a água das chuvas para cozinhar as unhas de colosso em seu caldeirão, para diluir o pó de osso, ou até mesmo para beber. Adicionava as vozes élficas que achava na floresta ou o ronronar de fêmeas excitadas à receita tradicional de poção do amor para máxima eficiência. Meditava por horas a fio, procurando transformar o caldo sem vida nas poções fantásticas de propriedades metafísicas pelas quais era famoso. Então vendia os frutos de seu trabalho por uma sandália nova, um pedaço de pão, ou um dia de vida. Seguia seu caminho em solidão, pagando de bom grado o caríssimo preço de sua magia, que era perseguir eternamente o outro lado do globo. E quando pensava que não poderia mais aguentar os calos nos pés e o vento nas costas, sentia a brisa leve de novembro soprando em seus ouvidos, e escolhia uma cidade para descansar de sua viagem. Assim seguia, feliz em apreciar cada momento da bênção que era a maldição dos magos.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Longa Vida ao Relojoeiro

          Todas as vezes que Maria de Los Remedios se via tropeçando nas engrenagens avulsas pela casa, ou pisando nos homenzinhos azulados que andavam livres pelos corredores, amaldiçoava o dia em que seu filho conheceu o Relojoeiro. Entrava em sua oficina apenas para praguejar contra os mistérios do tempo. O menino raquítico e seu mestre grisalho, porém, pareciam imersos num minuto despreocupado, invulneráveis aos impropérios da ignorância. Entretinham-se em encaixar as microscópicas engrenagens no coração pulsante de suas invenções, discutiam aos gritos as utilidades de um relógio que fizesse retroceder o tempo, e procuravam exaustivamente a maneira exata de se medir um segundo. Uma vez, criaram um enorme mecanismo para prever com exatidão a hora em que começa a chover nos sonhos, mas tiveram que desmontá-lo por completo quando perceberam que a barba do Relojoeiro estava presa em seu ventre metálico. Criaram também um dispositivo para medir a duração de um pensamento, e outro que fazia os minutos escorrerem por entre os dedos. Faziam por diversão reloginhos que mediam o tempo a esmo, acoplando em seu interior os homenzinhos azulados que sopravam as engrenagens. E passavam noites em claro, trabalhando ao som do incessante compasso dos ponteiros.
        Quando o Relojoeiro amanheceu morto, caído sobre uma máquina incompleta que tinha como objetivo retroceder a idade das doenças à insignificância de uma célula, Maria de Los Remedios não conseguiu comemorar sua morte como pretendia, contagiada que estava pelo luto profundo de seu filho. Passou a tarde inteira sentado ao lado do corpo sem vida de seu mestre, meditando em silêncio. Construiu então para si um gigantesco relógio, um monumento para lembrá-lo que o tempo não aceita mestres, que é amigo da morte, e que não poupa nem mesmo os seus mais apaixonados admiradores.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

O Poderoso Rufar do Bumbo Cósmico

            Andava pelas ruas com o enorme bumbo amarrado à sua barriga, tocando sua sinfonia de um instrumento só por alguns trocados. Rasgava e remendava o tecido da realidade e do bom senso a cada batida de seu bumbo cósmico. O timbre inconfundível de suas notas enchia as vielas de uma música alegre de coração, que fazia as petúnias pularem dos vasos para dançar na sacada das casas. Tirava o vidro das janelas e os deixava flutuando no ar. Os camundongos interrompiam seus delitos para cantarem em coro a canção dos piratas. As louças chinesas pulavam do armário para declamar seu amor aos pratos de plástico. A primeira página dos jornais enchia-se de tirinhas engraçadas sobre bárbaros e gatos cor de laranja. Enquanto isso os cachimbos dos homens inflamavam-se em sonhos empreendedores e saíam correndo pelas casas cuspindo seus delírios de fumaça. As galinhas que haviam sido postas para assar pulavam para fora dos fornos ressuscitadas e completamente restituídas de suas partes, correndo assustadas e ciscando migalhas no chão. Já os diversos quadros nas paredes pulavam para fora de sua realidade aquarela com o único propósito de ouvirem a música do bumbo cósmico uma única vez.
            Quando chegava a noite o músico encerrava as atividades, contava os trocados, comia como o dinheiro deixasse, e recolhia-se ao seu cafofo apertado para dormir. Então deitava-se sobre o bumbo e compunha para si um sonho leve, com velhos amigos e amores impossíveis. 

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

A Morte da Grande Besta

            Despiu seu corpo das vestes de guerra e largou as espadas e os machados para descansar seu corpo retalhado. Sua carne não parava de sangrar, enquanto as pontas de flecha envenenadas com beijos de mulher se embrenhavam cada vez mais em seus músculos quando respirava. Ao seu redor, a guerra continuava sem misericórdia. Os xamãs gritavam os mais horríveis impropérios da magia negra, os guerreiros se degolavam com suas foices enferrujadas, as criaturas sedentas de sangue devoravam os homens vivos, e o arauto da morte gargalhava no topo de uma árvore seca. E os cavaleiros de armadura desbotada e espadas incandescentes já não pareciam mais prestar atenção na grande besta que cambaleava ferida no campo de batalha. Em seu orgulho, tentou soltar um feroz urro de guerra, mas só conseguiu esganiçar um berro agudo de dor. Engasgava-se no sangue e na lama enquanto tentava manter de pé a sua silhueta monumental. Já não tinha mais forças em suas pernas, e não conseguia levantar nenhum de seus quatro braços por cima dos ombros. Sua cabeça de elefante não conseguia mexer-se para os lados ou sacudir a tromba. Uma de suas presas estava quebrada, enquanto a outra resistia bravamente à dor e ao cansaço que a estilhaçavam por dentro. Fechou os olhos e se lembrou de quando era o orgulho do exército imperial e rendia fortalezas com olhares de fúria. Respirou fundo para enfrentar a morte e abriu as pálpebras. Surpreendeu-se então ao ver um único dente-de-leão flutuando pelo campo de batalha. Em meio aos cadáveres, o suor e as lágrimas, ele decidiu pousar bem no rosto da grande besta, entre os seus olhos lânguidos de guerreiro caído. Ela então sentiu a vida escorrendo por entre os dedos, e caiu no chão sorrindo. O sangue que jorrava de seu corpo se espalhava pela terra, apenas para transformar-se numa flora fantástica que estendia seus galhos pelo campo de batalha abraçando os combatentes em ternura sincera, implorando pela paz ente os povos. Frutificava no interior das trombetas, impedindo seu brado de violência, e florescia no aço das espadas, fazendo-as perder toda intenção de maldade. Então quando a paz abriu seus braços por completo e tocou os exércitos de ponta a ponta, dando fim a três semanas de batalha consecutiva, puderam todos virar-se para admirar o cadáver de um colosso inverossímil, cercado por borboletas brancas, adornado por cogumelos de várias cores, com um estranho cheiro de felicidade e uma flor de lótus crescendo entre os olhos.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A Fantástica Viagem do Trólebus

            —Agora pense num lugar! —Disse o professor Freund— Um que seja leve e despreocupado, que tenha cheiro de infância e de boas lembranças.
            Tentou se concentrar com o vento forte no rosto e o canto das araras nos ouvidos, mas teve o fluxo de seu pensamento subitamente interrompido pela surpresa de ver passar por entre as nuvens um enorme palácio de azulejos azuis, exatamente conforme havia imaginado. Inclinou-se para fora da máquina voadora, observando espantado enquanto ele desaparecia no horizonte.
            —O trólebus pode ir a qualquer lugar —explicou o professor— Seja ele real ou imaginário!
            Imaginaram então uma cidade esculpida da rocha, habitada por homens vermelhos e criaturas fantásticas. Com castelos de cartas de tarô e casinhas de pão de ló. Em sua mente, ladrilharam as vielas com pedrinhas brancas, dando passagem às multidões de touros ferozes. Borbulharam suas ruas de gente feliz e sem medo, que gostava de esvoaçar lenços brancos por qualquer motivo. Criaram um festival dos tambores onde a população tocava eufórica com fitas vermelhas amarradas nos braços, e cada nota vibrava o universo em alegria sincera. Cultivaram uma flora de fungos e cogumelos coloridos nas paredes de granito. Montaram uma praça bem grande, onde os demônios vermelhos pudessem apregoar suas visões apocalípticas enquanto os deuses azuis tocavam violão por alguns trocados. Então declararam festa geral na cidade, manobrando o opulento corpo de serpente da máquina voadora para desviar dos fogos de artifício de todas as cores, apreciando cada momento da fantástica viagem do trólebus.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Não Despreze as Quiméricas Criaturas

                                     

     Procurava mover seu corpo colossal pela multidão do Mercado Amarelo, tentando distinguir a voz dos vendedores e a das quiméricas criaturas que viviam nos bolsos internos do seu jaleco. Usava uma luneta para poder ver já de longe as melhores ofertas de garrafas de sonhos e potes de areia brilhante. Um homem ao seu lado gritava os preços dos pêssegos e dos homenzinhos mecânicos, enquanto outro parecia entretido na mais cansativa das discussões, negociando o valor de uma maçã mordida. Chamou-lhe a atenção um gigantesco animal vestindo uma manta imperial rasgada, que trazia nos braços diversas espécies de peixes pendurados em cabides metálicos. O cheiro do peixe cru já puxava seu corpo em direção à tentação quando sentiu o chifre de uma das criaturas cutucando sua costela. “Não compre! Está estragado”, disse ela. Não convém desprezar as quiméricas criaturas. Cunhadas no suor e nas lágrimas, foram criadas para dar os mais sábios conselhos. “A solução para os problemas do cotidiano”, como as descreveu o vendedor. “Siga em frente”, continuaram aconselhando. Ansioso, continuou avançando sua forma monumental por entre as ruas, admirando através da luneta o espetáculo do Mercado Amarelo. Viu um vendedor de grãos deixar um punhado de lentilhas escorrer por entre os dedos como areia, enquanto outro trazia nos braços cântaros transbordando com mel envenenado. Passou ao seu lado um homem vendendo remédios e outro que oferecia vegetais de todos os tipos. “Compre umas bolinhas rosas para o nervoso”, disse uma das criaturas. “E algumas roxas para os delírios da mente”, completou mais uma. “Leve também alguns legumes para a sopa”, lembrou a outra. Obedeceu apenas para receber mais um conselho enigmático: “continue andando, e não se esqueça de pedir um balão”. Curioso, seguiu até dar de cara com um homem vendendo saquinhos de cores diferentes onde os cubos de gelo não derretiam, e os relógios não andavam. Mesmo não conseguindo conceber em sua mente um invento mais inútil, perguntou quanto custava, e o homem lhe respondeu fervendo: “uma poesia, um abraço, e um sorriso”. Pagou de bom grado com uns versinhos de sua autoria, um abraço apertado que vinha guardando para a melhor ocasião, e um sorriso amarelo que havia restado no fundo do seu coração. Pediu também o balão, que o vendedor ficou feliz em lhe dar de presente. Amarrou-o na cintura e viu-se livre de todo o peso da Terra, flutuando por cima do Mercado Amarelo, assistindo de longe o burburinho da multidão. E quando esteve livre de todo nervoso da rotina estafante, agradeceu à sorte por ter dado ouvidos às quiméricas criaturas.