Olhou para
fora de sua nave e a viu em chamas, o metal contorcendo-se aos risos e as asas
descolando-se do corpo. O peso diminuía a cada instante, já que sua pele de aço
esfarelava-se na atmosfera. Diante do desastre e da morte certa, a única
atitude que conseguiu tomar foi agir mecanicamente conforme mandava o severo
protocolo dos desbravadores do espaço, instalando os plugues neurais em sua
cabeça. Estes captariam suas memórias e as transmitiriam em ondas pelo cosmo,
ecoando no vazio até chegarem às mãos de alguma máquina responsável, que os
computaria e arquivaria para que as falhas do comandante fossem devidamente
prevenidas. Mas quando precisou se concentrar em recordar de tudo que havia
feito nas últimas vinte e quatro horas, distraiu-se e lembrou a primeira vez
que pisou n’O Colosso de Aço. Estava sendo ovacionado pela população que
comemorava a partida de mais um aventureiro do infinito. O som dos pífaros dos
homens-bode era abafado pelo burburinho da multidão e pelo canto dos pombos.
Mas quando o astronauta pisou em sua nave com o pé esquerdo pela primeira vez,
o mundo esteve em silêncio. Sentiu-se ecoar pela lataria, tocando cada detalhe
do ventre de sua embarcação, acariciando-a em sua totalidade. Andou por seus
corredores, apreciou a vista de suas janelas, e pôde passar os dedos longos por
seus controles adormecidos. Naquele dia rasgou a estratosfera para nunca mais voltar,
convencido que estava de que deveria ter nascido no espaço, e de que haveria de
morrer nele.
Então mesmo
em face da destruição e da catástrofe iminentes, o astronauta não se distraía
com a lenta canção do computador de bordo ou com as batatinhas chips que voavam
pela cabine. Empenhava-se apenas em ignorar o protocolo e apreciar suas
lembranças mais recônditas, saboreando de novo as mais singelas vitórias de sua
vida. Lembrou-se de quando decorou o primeiro parágrafo do juramento estelar,
apenas para nunca mais usá-lo de novo. Esteve mais uma vez no templo de sua
iniciação, cercado pelos meninos de capa e iluminado pelas sete velas
vermelhas. Reviveu a glória das batalhas interestelares, quando manobrava com
maestria a silhueta descomunal d’O Colosso de Aço por entre as linhas inimigas,
disparando seus canhões de revertério e seus raios estripadores. Viu naves de
ataque ardendo no ombro de Órion. Navegou próximo ao ventre dos deuses, nos
limites do espaço sideral. Pôde cantar a canção dos marinheiros sem pudor nos
confins da galáxia. Bebeu um copo de leite quente numa cantina árida que ficava
na mais miserável colmeia de escória e vilania. Presenciou a morte de estrelas
inteiras, e assistiu à luta dos cometas. E lembrou-se do privilégio que foi
dormir todas as noites sob a luz onipresente dos corpos celestes.
Mas quando viu
o pântano se aproximando por debaixo das nuvens, e pôde finalmente encarar o
planeta que o engolia, não sentiu nenhum tipo de medo ancestral. As entranhas
não lhe saltaram pela boca, e os membros não tremeram em desespero. Ao invés
disso, sentiu a tranquilidade banal de alguém que perde uma borracha debaixo da
mesa, ou que está atrasado para algo sem importância. E a última coisa que se
registrou pelos plugues neurais antes do silêncio completo foi uma lembrança
tranquila e despreocupada, de uma tarde em que passou degustando um pavê de
copo com o rei da Oceania.