Descendo
abruptamente pelas ladeiras da memória, passando pelas lembranças de infância e
pelos recônditos da adolescência, chegou repentinamente ao cheiro de seu tio.
Aquele perfume inconfundível, inverossímil, chegou até mesmo a existir por um
instante em suas narinas. Não pôde evitar em lembrar-se do homem, de sua
incomparável fama de leitor voraz e de devorador de javalis. Perguntou-se se
ele continuava no ofício de domador de leões, ou se voltara a aquecer motores
de barcos a vapor com a força de suas ideias. As cicatrizes profundas em suas
costas, entalhadas artisticamente pela crueldade dos grandes felinos,
tornaram-se a marca definitiva de sua existência sobre a Terra, tendo sido até
mesmo capa de jornal. Seu sobrinho, porém, associava sua presença ao perfume
único e ao barulho metálico de suas botas de esporas. Estas, que ele dizia ter
ganhado num duelo contra um homem sem nome, foram na verdade presentes de um
vendedor itinerante que ele salvou de ser abocanhado por um crocodilo circense
que dava piruetas. Não se atrevia a tirá-las, já que pareciam estar impregnadas
com a maldição da boa sorte. Com elas, achou na praia uma concha que sussurrava
a localização dos tesouros, foi errado por sete tiros à queima-roupa, e escapou
por um triz de ser soterrado pelo desmoronamento da torre de Babel. Mas quando
abriu a porta para comunicar a seu sobrinho que havia domado um touro pelos
chifres, nem mesmo as botas da sorte conseguiram impedir as lágrimas de fugirem
de seus olhos. E todas as noites, quando interrompia sua eterna viagem ao redor
do mundo, saindo do seio acolhedor da estrada para acampar na natureza, tinha
seus estudos arcanos subitamente interrompidos por golpes furtivos da memória,
tendo os sentidos e o coração atacados pelo cheiro inconfundível do tio que
amou como pai.
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