Guardou seus
pensamentos chuvosos dentro de uma garrafa, observando a tempestade por trás do
vidro azulado. Sentiu-se completamente aliviado por estar longe da luz dos
raios e do estrondo dos trovões. Podia admirar as estrelas de novo, sem a
interferência cinzenta das nuvens carregadas. Estava livre para vestir suas
nobres roupas de açúcar, sem precisar temer a nudez e a vergonha. Podia enfim
andar sem o peso dos fortes pingos d’água constantemente testando a força de
suas costas. Conseguiria outra vez, depois de tantos anos, usar seu magnífico
capacete com enormes antenas metálicas, destemido e despreocupado, confiante
que sua vaidade não haveria de ser incomodada pelas descargas elétricas que
despencavam dos céus. E o mar, antes tão bravio, poderia ser, finalmente, seu.
Estava livre para desbravar os oceanos, explorar os mil cantos do globo, e
travar relações com criaturas fantásticas. Era dono de si, depois de tantos anos
escravo da tempestade.
Mas mesmo
estando livre, sentia que não poderia abandonar a garrafa ao seu próprio
destino. Temia que fosse achada, aberta, e que a maldição que foi sua caísse
sobre os ombros de outra pessoa. Queria escondê-la, trancá-la num baú, cercá-la
por um círculo de fogo e deixá-la guardada por um gigante. Mas sabia que a
astúcia iria encontrar o esconderijo, que o tempo devoraria o baú, que a água
apagaria o fogo, que as engenhocas dos gananciosos derrotariam o gigante, e que
as mãos dos homens imprudentes haveriam de abrir outra vez a garrafa das
maldições. Sabia que só havia um jeito de impedir que aquela desgraça voltasse
a cair sobre a Terra.
Então
naquela tarde algumas pessoas viram um homem zarpando ao desconhecido, vestindo
um terno branco de açúcar, usando um capacete de antenas metálicas, e navegando
naquilo que parecia ser uma enorme embarcação de vidro.
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