sábado, 1 de fevereiro de 2014

A Garrafa e a Chuva

            Guardou seus pensamentos chuvosos dentro de uma garrafa, observando a tempestade por trás do vidro azulado. Sentiu-se completamente aliviado por estar longe da luz dos raios e do estrondo dos trovões. Podia admirar as estrelas de novo, sem a interferência cinzenta das nuvens carregadas. Estava livre para vestir suas nobres roupas de açúcar, sem precisar temer a nudez e a vergonha. Podia enfim andar sem o peso dos fortes pingos d’água constantemente testando a força de suas costas. Conseguiria outra vez, depois de tantos anos, usar seu magnífico capacete com enormes antenas metálicas, destemido e despreocupado, confiante que sua vaidade não haveria de ser incomodada pelas descargas elétricas que despencavam dos céus. E o mar, antes tão bravio, poderia ser, finalmente, seu. Estava livre para desbravar os oceanos, explorar os mil cantos do globo, e travar relações com criaturas fantásticas. Era dono de si, depois de tantos anos escravo da tempestade.
            Mas mesmo estando livre, sentia que não poderia abandonar a garrafa ao seu próprio destino. Temia que fosse achada, aberta, e que a maldição que foi sua caísse sobre os ombros de outra pessoa. Queria escondê-la, trancá-la num baú, cercá-la por um círculo de fogo e deixá-la guardada por um gigante. Mas sabia que a astúcia iria encontrar o esconderijo, que o tempo devoraria o baú, que a água apagaria o fogo, que as engenhocas dos gananciosos derrotariam o gigante, e que as mãos dos homens imprudentes haveriam de abrir outra vez a garrafa das maldições. Sabia que só havia um jeito de impedir que aquela desgraça voltasse a cair sobre a Terra.
            Então naquela tarde algumas pessoas viram um homem zarpando ao desconhecido, vestindo um terno branco de açúcar, usando um capacete de antenas metálicas, e navegando naquilo que parecia ser uma enorme embarcação de vidro.

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